O que é “discutir a verdade” em filosofia?
Começo
pelo episódio de Pedro. “E passada quase uma hora, um outro afirmava,
dizendo: também este verdadeiramente estava com ele, pois também é
galileu. E Pedro disse: homem, não sei o que dizes. E logo, estando ele
ainda a falar, cantou o galo. E, virando-se o Senhor, olhou para Pedro, e
Pedro lembrou-se das palavras do Senhor, como lhe havia dito: antes que
o galo cante hoje, me negará três vezes”. Era então a terceira vez que
Pedro, ao ser reconhecido como amigo de Jesus, mentia, afirmando que não
conhecia seu mestre.
Pedro,
o homem que fundou a Igreja de Jesus, o incorruptível, era de fato um
corrompido, um grande mentiroso? Pedro foi, sem dúvida, naquele momento,
um fraco. Um covarde. E certamente, naquele momento, um mentiroso.
O que caracteriza a mentira?
Jacques
Derrida nos lembra a diferença entre o que é mentira e o que é falso.
Ele tem de retomar Santo Agostinho para tal, pois é somente a partir de
uma perspectiva em que alguma subjetividade está envolvida que a mentira
pode se dar. O que vale para Santo Agostinho vale para Derrida: o que
conta, para dizer que uma expressão é fruto do ato de mentir, é a
intenção de quem a diz. A frase é de Agostinho: ‘não há mentira, apesar
do que se diz, sem intenção, desejo ou vontade de enganar’ (Apud
Derrida, 1996, p. 10). Derrida diz que “a mentira depende do dizer e do
querer dizer, do ato de dizer”, ela “permanece independente da verdade
ou falsidade do conteúdo”, ou seja, “daquilo que é dito” (cf. Derrida,
1996, pp 9-11).
Pedro
foi mentiroso, porque intencionalmente queria se livrar de Jesus no
momento em que, estando seu mestre preso, ele foi apontado como seguidor
e, então, viu que poderia também cair em desgraça como subversivo. Mas a
noção de falsidade e de verdade não cabem a Pedro, somente ao conteúdo
de seu enunciado, de sua sentença: “Homem, não sei o que dizes”. O que
Derrida nos ensina é que o enunciado “Homem, não sei o que dizes” é
contrastado com outro enunciado, “também este estava verdadeiramente com
ele, pois também é galileu”. O que tomamos como estando em jogo, neste
caso, são enunciados e, portanto, verdade e falsidade. Embora eles
tenham sido pronunciados por homens, um que acusa e outro que se escusa,
tais enunciados podem ser desligados de quem os enunciou e se colocarem
um contra o outro. Se assim é, o enunciado de Pedro, “homem, não sei o
dizes”, será dito como verdadeiro ou falso. Mas se o enunciado é
acoplado a uma intenção (o desejo de Pedro de se livrar de Jesus naquele
momento ou a tentativa de Pedro de enganar os que o reconheceram),
então o enunciado pode ser mentira ou verdade.
No
estudo filosófico da verdade, um primeiro ato pode ser o de distinguir
os pares falso-verdadeiro e mentira-verdade. Um segundo ato pode ser o
de lembrar que certas correntes filosóficas estão menos interessadas em
tal distinção do que em investigar a “natureza da verdade”. Aqui, não é o
caso de Pedro e seu acusador, mas de Jesus e Pilatos.
“Disse-lhe,
pois, Pilatos: logo, tu és rei? Jesus respondeu: tu o dizes que eu sou
rei. Eu para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo
aquele que é da verdade, ouve a minha voz. Disse-lhe Pilatos: que é a
verdade? E, dizendo isso, tornou a ir ter com os judeus, e disse-lhes:
não acho nele crime algum”.
Pilatos
não podia mesmo ver crime algum. Como o diálogo foi conduzido,
importava menos para ele mentiras e verdades, mas sim uma questão
metafísica: “o que é a verdade?”. A verdade da verdade – eis o que está
em pauta aqui. Ao levar o rumo da conversa para tal encruzilhada,
propositadamente, pois ele parecia quer livrar Jesus (ou, ao menos, se
livrar do problema), Pilatos não tinha razão para continuar, levantou-se
e foi dizer aos judeus que ele não estava encontrando falta alguma em
Jesus.
Filosoficamente, a natureza da verdade
está relacionada, direta ou indiretamente, às “teorias de verdade”. As
teorias tradicionais ou metafisicamente fortes são as que parecem querer
explicar o que poderia alimentar respostas à questão “o que é a
verdade?”. Muitas vezes, tais teorias respondem positivamente, outras
vezes criam grandes enredos para induzir o leitor a captar a noção
discutida. As teorias não substantivas de verdade (ou não-metafísicas,
ou metafisicamente fracas), por sua vez, tendem a criar descrições de
como ocorre na linguagem a participação do termo “verdade” e/ou
“verdadeiro” (cf. Blackburn, 1999).